quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

A Expressão e o Corpo ou a Expressão do Corpo?




Neste ensaio escolhi discutir a representação da Figura Humana e o Corpo no Expressionismo, mais precisamente no Grupo Die Brücke (1904). Já que dentre os principais movimentos artísticos do século XX, será ele o mais contundente interventor e produtor das alterações na representação da temática.
Sobretudo, considerando-se o fato de que os aspectos da imagem do corpo como forma e proporção no movimento expressionista sofrem grandes transformações, que extrapolam as relações plásticas e visuais da representação da figura humana para acentuar o uso do tema do corpo como elemento de crítica e denúncia social. Evento que para as pesquisas do Grupo de Estudos “O Corpo”, que coordeno junto à Unesp de Bauru, é muito significativo, com implicações futuras na temática da figura humana, como base para os movimentos contemporâneos da Nova Figuração e a Body Art, entre os anos de 1960.
A principal característica do movimento Expressionista será a reação ao impressionismo que se preocupou mais com as sensações de luz e cor do que com os sentimentos humanos e com as problemáticas da sociedade moderna. Além do uso de temas para explorar a expressão humana, seus sentimentos e emoções, interpretação das angustias do homem do séc. XX, suas características psicológicas por meio de pinturas dramáticas traduzidas em linhas e cores fortes e bem marcadas, herdadas dos efeitos dramáticos das pinturas de Van Gogh (1853-1890).
Também o artista norueguês Edvard Munch (1863-1944) influenciou os artistas do movimento expressionista. Munch, em 1893, pinta “O Grito”, cujas linhas sinuosas do céu e da água e a linha diagonal da ponte, conduzem o olhar do observador para boca da figura que se abre num grito perturbador, que segundo o artista é o grito da humanidade. Nesta pintura a figura humana não apresenta suas linhas reais, mas contorce-se sob o destino de suas emoções.
O século XX começa estendendo suas conquistas técnicas e o progresso industrial do século XIX. Nos aspectos sociais acentuam-se as diferenças entre a alta burguesia e o proletariado. Surgem os primeiros movimentos sindicais que passam a interferir nas sociedades industrializadas e o capitalismo se organiza.
Um período repleto de conturbações políticas em um pequeno espaço de tempo, praticamente ocorridas todas nas primeiras décadas do século. Marcadas pela Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa, o surgimento do fascismo na Itália e o do nazismo na Alemanha. A situação política gerada pela Itália e Alemanha promoveu um novo conflito mundial entre europeus e americanos. A Segunda Guerra Mundial trouxe à tona as pesquisas e os abusos da energia nuclear. Aconteceram ainda neste século a conquista do espaço, o uso crescente da computação e das tecnologias de satélites que colocaram em comunicação imediata as mais longínquas partes do mundo.
O Expressionismo será um movimento nascente deste complexo e contraditório cenário, por vezes angustiante e perplexo, o qual servirá de inspiração para os movimentos e tendências artísticas como o Fauvismo, o Cubismo, o Abstracionismo, o Surrealismo, a Pintura Metafísica, a Op - art e a Pop - art.
Neste contexto tem origem em Dresden, na Alemanha, por volta de 1904 e 1905, o grupo chamado Die Brücke, que em português significa A Ponte. Entre os artistas integrantes deste grupo consta Ernest Kirchner (1880-1938), Erich Heckel (1883-1970), Karl Schmidt-Rottluff (1884-1976).
O tema predominante dos artistas da Die Brücke é o Nu feminino, ocasionalmente o masculino. O tema do Nu demonstra amplos interesses decorativos, simbólicos e culturais e o corpo nu feminino, em particular, se tornou para estes artistas motivo central, cujos significados literais e simbólicos indicam uma associação implícita e explicita entre o corpo feminino nu e a cultura masculina ocidental.
Tais associações ocorrem por radicalismo técnico, liberação sexual e atividades anti-burguesas como na obra “Banhistas em Moritzburg” (1909), de Ernest Kirchner.
As pinturas de figura humana destes expressionistas inauguram um modo mais autêntico de expressão social do artista. Os Nus pintados pelo grupo Die Brücke, entre o período de 1901 a 1916, apresentam deslocamentos conceituais de significados simbólicos, com as seguintes características: estilo muito diferente entre as obras do grupo, tinta aplicada em áreas mais planas, formas reduzidas a formatos mais angulares, quase pontiagudos, cores vibrantes e não naturais; sensação de distorção e deformações.
Os traços aplicados à Figura Humana do movimento Die Brücke, faz uso de outra fonte formal: artefatos e desenhos primitivos e exóticos, objetos africanos, da Oceania. Interesse muito comum neste período da História da Arte, o qual caracteriza uma qualidade da modernidade que se atrai por expressões incivilizadas, por interesse pelo primitivo, algo totalmente novo na visualidade, como ocorreu na França do século XIX, revelado, sobretudo, por Picasso (1881-1973), Gauguin (1848-1903) e outros.
No contexto alemão o contato com o filósofo Nietzche, que propõe a noção do gênio como algo que reside no instinto, favorece uma expressão pessoal dos artistas, mais instintiva.
Outro elemento que interfere na representação do corpo, foi à nudez das mulheres em situações sociais em que eram consideradas marginais, como a prostituição, a dança e o trabalho como modelo, que eram as carreiras sugeridas por seu elegante estado de nudez. Assim surgem as conotações sexuais nas obras de artistas como outrora Toulouse Lautrec (1864-1901), fizera muito bem nos cabarés e casas noturnas.
Kirchner confere ao nu feminino o estatuto de “moderno”, ao introduzir em suas pinturas a noção de auto-expressão e sexualidade dos nus. Segundo Harrison: “Do ponto de vista burguês essa sexualidade franca, associada aos grupos sociais como prostitutas, boêmios, e dançarinas, era condenada como decadente e desviante”. (HARRISON, et.al 1998, pg.75).
A representação do corpo nu era para Kirchner, em particular, uma arma em potencial na refutação dos costumes sexuais burgueses da época. Entretanto, suas obras contrariavam as expectativas artísticas contemporâneas, que não podem ser interpretadas como pura oposição entre a natureza humana e a cultura, imposta pela sociedade opressora. O que estes artistas concretizam, e junto com suas posturas políticas é o que nos atraem em nossas pesquisas, é um envolvimento crítico com um antigo tema da História da Arte, a Figura Humana, o Corpo.
Em Dresden, onde surge o grupo Die Brücke, a cidade possuía muitas casas de saúde, sanatórios e locais que promoviam uma medicina natural e a revitalização do corpo por meio do nudismo, contudo a liberdade sexual não fazia parte dessa cultura do corpo.
O primitivismo e sua representação do corpo do grupo Die Brücke pode, portanto, ser considerado ambíguo, pois ao mesmo tempo em que estimula sua representação e explora a temática como crítica, o deforma e o apresenta em situações constrangedoras.
O uso de distorções técnicas, a confusão espacial e a utilização de convenções para a representação do Nu contribuem para uma ambivalência pictórica, concentrando nossa atenção tanto em questões de representação pictórica quanto nas associações modernas de um tema supostamente primitivo.
No Brasil, assim como em todo o mundo ocidental, até o começo do século XX a tendência que dominará a pintura será o Realismo Burguês, que pode ser considerado junto com o Impressionismo um antecedente do Expressionismo. Diante de suas características, destacadas por Leite (1982) como um movimento formalmente vazio, de apelo barato ao sentimental, erótico e não raro caindo na mera anedota, percebemos a força da atitude do movimento Expressionista em se contrapor à representação da figura humana, sobretudo ao Nu feminino, de caráter fútil e sensual.
Vejamos a seguir uma análise que faço de uma obra brasileira, do final do século XIX, que antecede o movimento expressionista.
Trata-se de um artista brasileiro cuja linguagem plástica rica e nobre relaciona-se com a tendência do realismo burguês. Sua produção pictórica é marcada por pinturas de pinceladas sensuais, delicadas e realistas. Refiro-me a José Ferraz de Almeida Jr. (1850-1899), artista eclético que abordou desde temas históricos, religiosos, retratos e paisagens até figura humana, como o Nu, Descanso do Modelo (1882), [fig.02]. A importância de Almeida Jr. para este cenário é decorrente da maneira como ele trata a figura humana, com erotismo e sensualidade, dando ênfase para as curvas e sinuosidades do corpo feminino, intacto.
O quadro Descanso do Modelo tem como tema a figura humana feminina de uma modelo que posa para o artista. Retrata um ambiente interno, composto de uma sala decorada por tapetes, objetos de artes como vasos e cerâmicas. No centro da composição, sentada de costas e na frente de um piano, se encontra a imagem da modelo. Ela tem os ombros e as costas nuas, não vemos suas pernas e um tecido estampado atado às cinturas esconde suas ancas deixando à mostra apenas às curvas e as linhas sinuosas dos quadris e das cinturas. Está de perfil, o rosto levemente levantado, cabelos presos e olha em direção à figura masculina à sua esquerda.
Sentado à frente de um cavalete e de uma tela está um homem vestido de terno preto, chapéu, possui barba, tem um cigarro na boca, bochechas vermelhas e um leve sorriso maroto que fixa o olhar em direção à figura feminina. São as únicas figuras humanas na pintura. Porém são contrastantes e representam os papéis do feminino e do masculino, da virilidade e da sensualidade, da vida e das relações sociais que a representação do tema da figura humana pode abarcar.
A figura humana masculina contrasta com a figura do corpo feminino pelo tratamento de cor, vestimentas, entre outros elementos estéticos. O homem está vestido, roupa escura, frio, colocado à esquerda, virado de frente para o público e mais abaixo do eixo central da composição. Em contrapartida a mulher está nua, sua pele é clara e rosa, cor de pêssego suave, tons quentes, ela está de costas e ocupa o eixo central da composição.
Os corpos foram representados de acordo com os cânones acadêmicos de representação da figura humana e as partes do corpo feminino são perfeitas e bem elaboradas, buscando o ideal do corpo intacto, sem deformidades ou fragmentações. O tema e posição do corpo, nu e de costas, como em Descanso do Modelo de Almeida Jr., sempre foram muito explorados pela pintura clássica e acentuam a atmosfera de mistério e sensualidade de um ambiente como o de um atelier e suas modelos. Sobre esta obra, dispõe Coelho: “Em Almeida Júnior, não é a vida que se vê, mas a carne: o corpo está mais que vivo sua sensualidade transparece e toma conta da cena pintada e do pintor.” (COELHO, 2000, p. 47).
Ao compararmos o Nu feminino de Kirchner e o de Almeida Jr. vemos com clareza as diferenças conceituais e contraditórias não só entre os artistas, mas entre as concepções de Corpo de ambos os movimentos artísticos – o Realismo Burguês e o Expressionismo.
O Corpo e o tema da Figura Humana podem ser usados tanto para tratar da sensualidade e da futilidade da vida cotidiana quanto para expor a sexualidade e a opressão da mesma vida em sociedade. É a expressão dinâmica do Corpo. São a expressão e o corpo.



Regilene Sarzi-Ribeiro
Mestre em artes, professora, artista plástica e curadora