quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

"A arte é o vício: não se a esposa legitimamente, mas a violenta!"




Degas é universalmente reconhecido como o grande Mestre das figuras em movimento, um hábil desenhista e um grande inovador na arte do retrato. As suas obras são hoje celebradas, também, pela inigualável técnica e originalidade das composições.
Embora alguns críticos da época tivessem reconhecido bem cedo as qualidades artísticas daquele jovem "bizarro", o verdadeiro sucesso ele só obteve nos últimos anos de sua vida, mas a consagração veio depois de sua morte. Este reconhecimento tardio se deve principalmente ao fato de que Degas, arredio como era, expôs pouquíssimo a sua obra. Basta pensar que a única exposição individual foi realizada em 1893, quando ele tinha quase sessenta anos, onde ele apresentou umas trinta paisagens em pastel. Entre 1865 e 1870 expôs um ou dois quadros em cada ano no "Salon" e também participou a sete das oitos exposições feitas pelo grupo dos impressionistas.
A produção artística de Degas foi intensa, muitos de seus trabalhos restaram inacabados e são inúmeros os desenhos, rascunhos e esboços que ele fazia ao vivo, para depois realizar em seu estúdio a versão definitiva.
Desde jovem, freqüentando o Louvre e os grandes museus, especialmente os italianos, Degas foi atraído pelas obras de Poussin, Velasquez, Goya, David, Ingres, do qual último foi sempre um fervoroso admirador, assim como dos Quatrocentistas italianos.
Embora sendo enquadrado entre os impressionistas, Degas não pode ser considerado um impressionista, enquanto percorre uma estrada totalmente diversa do novo grupo. O que ele havia em comum com o movimento era o desejo de renovar a expressão artística em direção ao modernismo. Ao contrário dos demais impressionistas, Degas nunca quis destacar-se totalmente do passado e o seu empenho artístico foi sempre voltado para conciliar o "velho" e o "novo" . Famosa a tal propósito é a sua frase: "Ah! Giotto! Deixe-me ver Paris, e tu, Paris, deixe-me ver Giotto"
Degas amava se auto definir um "realista", tanto é que em ocasião da oitava exposição dos impressionistas, realizada em 1886, ele pretendeu que a mesma fosse apresentada como uma "exposição de um grupo de artistas independentes, realistas e impressionistas".
Mas vejamos de acompanhar o percurso artístico de Degas na sua evolução. Aos dezenove anos é aluno de Barrias e freqüenta assiduamente o Louvre e o "Cabinet des Estampes" da "Bibliothéque Nationale", copiando as obras dos grandes mestres do passado. Porém a freqüência de Degas ao estúdio de Barrias foi pôr pouco tempo, então foi discípulo de Louis Lamothe, que, pôr sua vez, tinha sido aluno de Ingres. E foi através do próprio Lamothe que Degas conheceu Ingres, se tornando um seu admirador fervoroso. Pela influencia, ainda que indireta, que Ingres exerceu sobre ele, Degas foi sempre um convicto defensor de que o desenho, com "linhas amplas e contínuas", deve ser a base de toda composição artística.
Porém o fascínio que exercitaram sobre ele seja Ingres, assim como outros grandes Mestres do passado, não impediram a Degas de buscar, com obstinado empenho, um novo caminho. O mundo flui, se renova e ele é atraído pôr esta nova realidade. Desde os seus primeiros retratos se nota a presença do relacionamento entre "passado" e "presente", que o acompanhará pôr toda a sua atividade futura.
Ao contrário dos Impressionistas, Degas não amava trabalhar "en plein air", preferindo decididamente a luz artificial de ambientes internos, que lhe dava uma maior liberdade e a possibilidade de manipular os sujeitos e modificar a pose como bem entendia, na qual nada, segundo ele mesmo dizia, deveria ser deixado ao acaso. Até os sujeitos ao externo, como as corridas de cavalos, os jóqueis, as cenas de caça e, também, as paisagens, mesmo sendo estudados no local nos mínimos detalhes mediante rascunhos e esboços, eram mais tarde reelaborados em seu estúdio.
Falamos que Degas se considerava um "realista", mas este seu contato com a realidade é bastante frio, estudado e meditado. Enquanto Manet adorava trabalhar seguindo o seu instinto, reproduzia tudo o que via, como ele mesmo dizia, Degas, ao contrário, colocando sempre em discussão o seu trabalho, dizia sempre: "Eu não sei nada a respeito da inspiração, da espontaneidade, do temperamento, o que eu faço é resultado da reflexão e do estudar os grandes Mestres".
Parece estranho que ele, que na sua vida inteira não teve algum relacionamento, que tivesse sido importante, com alguma mulher, tenha escolhido próprio as mulheres como um dos temas principais da sua obra. Mas a "mulher" vista pôr Degas, as suas "bailarinas", as suas "mulheres tomando banho", as suas "passadeiras", as suas "lavadeiras", são figuras femininas nada exaltadas, nem um pouco românticas, são apenas objetos de escrupuloso, quase obsessivo, estudo de seus movimentos profissionais ou das suas mais íntimas atividades quotidianas.
As "bailarinas e as "mulheres tomando banho" parecem trabalhos feitos em seqüência cinematográfica, fascinantes pôr seus cortes totalmente inovadores , pelas empaginações descentradas, pelas angulações incomuns: evidente, em tal sentido, a influência do "orientalismo", naquela época em grande moda, e das estampas japonesas, das quais Degas era um apaixonado colecionador. Porém Degas se distingue também, pelo delicado traçado de seu desenho, assim como pela magistral interpretação da luz.
Degas não quer nos surpreender ou impressionar: a sua é uma narrativa sem trama. A situação que ele nos mostra , seja esta a evolução da bailarina ou o gesto da passadeira que aperta o ferro sobre a roupa, é pôr si só, e simplesmente, o momento estético fixado na tela, a sua representação harmônica. Mas quanto trabalho, quantas provas para representar aquilo que parece ser um simples gesto represo em uma fortunada visão instantânea! Degas, a tal propósito, anotou: "É preciso refazer dez vezes, cem vezes o mesmo sujeito. Nada na arte deve parecer casual, nem mesmo o movimento".
Antes de percorrermos juntos os mais importantes dados cronológicos da vida e obra de Degas, encerro estas anotações sobre Degas Artista, transcrevendo alguns juízos críticos de seus contemporâneos.
"Até este momento é a pessoa que melhor vi representar, na tradução da vida moderna, a alma desta vida"(E. de Goncourt, Journal, 13 de fevereiro de 1874)
Em 1876, Edmond Duranty, em ocasião da segunda exposição dos impressionistas, escreveu sobre Degas: "Assim a série das novas idéias se formou principalmente na mente de um desenhista, um dos nossos, um daqueles que expõem nestas salas, um homem dotado do mais raro talento e da mais rara inteligência. Diversas pessoas se aproveitaram de suas concepções e do seu desinteresse artístico, e é tempo que se faça justiça e se conheça a fonte que tantos pintores desfrutaram, pintores que jamais admitiriam revelá-la; faço votos de que este artista continue a exercitar as suas faculdades prodigiosas, como filantrópico da arte, não como um homem de negócios como tantos outros".
G. Rivière, em 1877, em ocasião da terceira exposição dos impressionistas, assim escreveu sobre a obra de Degas: "Não procura nos fazer acreditar em uma candura que não possui; ao contrário, a sua sabedoria prodigiosa se impõe onde quer que seja; a sua habilidade , tão atraente e peculiar, dispõe os personagens no modo mais imprevisível e prazeroso, permanecendo sempre verdadeiro e natural". E, se referindo sempre a Degas, continua: "É um observador; nunca busca exagerações; o efeito é conseguido sempre através da própria realidade, sem que seja forçada. Isto faz dele o histórico mais precioso das cenas que apresenta."
E, a propósito dos nus de Degas, J.K. Haysmans, em 1889, ecreveu: "...Não é mais a carne fria e lisa, sempre nua das deusas, ...mas é próprio carne despida, real, viva..."
Entre as anotações do próprio Degas a respeito de seu trabalho, recordamos algumas entre as mais famosas: "Feliz de mim, que não encontrei o meu estilo, coisa que me faria muita raiva!" "A pintura não é tão difícil, quando não se sabe... mas, quando se sabe...oh! então... é tudo outra coisa."
Em relação aos seus "nus femininos", Degas escreveu: "... O animal humano que cuida de si mesmo, uma gata que se lambe. Até o momento o nu tinha sido apresentado em poses que pressupunham um público; as minhas mulheres, ao contrário, são pessoas simples, honestas, que não se preocupam de outras coisas além do próprio cuidado com o corpo".
Enfim, em relação à Arte, Degas escreveu: "A arte é o vício: não se a esposa legitimamente, mas a violenta!"
(Texto de ORAZIO CENTARO)